Nos \u00faltimos tempos tenho conhecido novas escritoras. Que fique claro, novas ao meu conhecimento. Uma delas \u00e9 Scholastique Mukasonga, uma africana, que esteve no Brasil no ano passado e tive a oportunidade de ouvir. Ela, voz doce e pausada, contava a sua hist\u00f3ria com uma serenidade que contrastava com o horror dos fatos narrados.<\/p>\n

Mukasonga teve 27 membros da fam\u00edlia mortos em 1994 no genoc\u00eddio de Ruanda. Nessa \u00e9poca ela j\u00e1 morava na Fran\u00e7a, por isso sobreviveu e tamb\u00e9m por isso come\u00e7ou a escrever.<\/p>\n

Ela nos conta que sua m\u00e3e costumava dizer que as filhas t\u00eam a obriga\u00e7\u00e3o de cobrir o cad\u00e1ver de uma m\u00e3e, mas ela n\u00e3o estava l\u00e1, nem teve a chance de cobrir o corpo de sua m\u00e3e morta. Em suas palavras: \u201cAo escrever \u00e9 como se constru\u00edsse um t\u00famulo de papel para todos aqueles que jamais ter\u00e3o um t\u00famulo.\u201d<\/p>\n

O seu segundo livro chama-se \u201cA mulher de p\u00e9s descal\u00e7os\u201d. \u00c9 um relato da sua inf\u00e2ncia e um reconhecimento da importante fun\u00e7\u00e3o da m\u00e3e na sua vida e de sua fam\u00edlia. Ela mistura lembran\u00e7as de um para\u00edso perdido a outras onde comparece um medo constante pela sobreviv\u00eancia. O que me chamou a aten\u00e7\u00e3o foi o seu olhar de filha que em suas mem\u00f3rias resgata um aprendizado do feminino, um jeito de ser que lhe d\u00e1 abrigo.<\/p>\n

Ela conclui a introdu\u00e7\u00e3o do livro assim: \u201cM\u00e3ezinha, eu n\u00e3o estava l\u00e1 para cobrir o seu corpo, e tenho apenas palavras (…) para realizar aquilo que voc\u00ea pediu. E estou sozinha com minhas pobres palavras e com minhas frases, na p\u00e1gina do caderno, tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente.\u201d<\/p>\n

M\u00e3e \u00e9 uma fun\u00e7\u00e3o, basta ouvir ao redor, \u201cgosto de Maria como uma m\u00e3e \u201c, ou \u201cm\u00e3e \u00e9 quem cria\u201d, ou ainda \u201cJoana \u00e9 uma m\u00e3e para mim\u201d.<\/p>\n

Nos ensinou Sigmund Freud, pai da psican\u00e1lise, que m\u00e3e \u00e9 refer\u00eancia, \u00e9 polo de identifica\u00e7\u00e3o e objeto de amor.<\/p>\n

Uma pergunta insistente n\u00e3o me sai da cabe\u00e7a: O corpo da m\u00e3e est\u00e1 ausente, mas h\u00e1 cad\u00e1ver de m\u00e3e?<\/p>\n

Isso morre junto da pessoa que cumpriu essa fun\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

Ao falar de fun\u00e7\u00e3o materna Jacques Lacan, psicanalista franc\u00eas, nos diz que sua fun\u00e7\u00e3o principal est\u00e1 em transmitir o que \u00e9 da ordem da falta, do que lhe falta. S\u00f3 assim permite que, com isso, uma singularidade se inscreva para cada um dos seus filhos.<\/p>\n

Em seu livro, Mukasonga nos convida a entrar no seu universo particular e acompanh\u00e1-la nesse percurso da rela\u00e7\u00e3o m\u00e3e -filha. A beleza do seu relato est\u00e1 em nos mostrar que para cada sujeito \u00e9 necess\u00e1rio ir al\u00e9m da rela\u00e7\u00e3o primeira com a m\u00e3e. Dar um passo para o mundo \u00e9 tomar o caminho da palavra. A cada um de n\u00f3s que nesse momento l\u00ea esse texto, foi necess\u00e1rio tomar a palavra para com ela se dizer Eu.<\/p>\n

Ao fazer da falta da m\u00e3e a causa do seu desejo de se tornar escritora, ela nos aponta o que est\u00e1 na constitui\u00e7\u00e3o de cada sujeito e nos mostra que a vida acontece apesar de.<\/p>\n

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Simone Aziz<\/p>\n

Psicanalista<\/p>\n

Tel: 2719-7091<\/p>\n

E-mail: simone.aziz.psicanalise@gmail.com<\/a><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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